Tutto Passa

João Salazar Braga
5 min readDec 10, 2022

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Tutto Passa. Everything Passes, from the series See Naples and Die, 2020.

FICÇÃO /

No início, os napolitanos de origem não eram capazes de distinguir o olhar esverdeado do Velho, então jovem, dos tons da beleza natural da cidade mediterrânea.

Tutto passa. É o que se lê no peito avermelhado do Velho napolitano. Este homem tem ar — e corpo — de pescador, daqueles que juram ter visto sereias lindíssimas e ter feito amor com elas.

Os seus olhos são de um verde bem vivo, mas a sua expressão está morta. O peito, que é dominado pela tatuagem, aproxima-se de tons cor-de-laranja. Este homem, a representação perfeita de um velho, tem de ter sido pescador; só pode ter sido essa a sua vida.

Atrás dele, o Vesúvio brilha. O vulcão é uma extensão do mar colorido. As águas copiam a cor dos olhos do Velho.

O Velho tem os braços escondidos atrás das costas; dir-se-ia que esconde algo — talvez a justificação do seu olhar apático, mas profundo? Pode ser que, nas suas mãos, leve o seu próprio coração drenado, que, metaforicamente (ou não), fora arrancado após um desgosto amoroso provocado pela Mulher mais bonita da cidade de Trieste. Uma mulher mais bonita do que as sereias.

Não nasceu em Nápoles, mas tornou-se num napolitano, assim que a cidade cresceu no seu interior. O Velho aprendeu a ser napolitano. Chegou ao sul do país dois ou três anos depois do fim da guerra. À custa do conflito armado, perdeu um dos seus três irmãos: Giuseppe, o primeiro a sair do útero da sua mãe, morreu, certamente em vão, na invasão da Sicília, em 1943.

No início, os napolitanos de origem não eram capazes de distinguir o olhar esverdeado do Velho, então jovem, dos tons da beleza natural da cidade mediterrânea. Os olhos do Velho estariam destinados àquelas ruas confusas que, quase sempre, dão para o mar.

Quando chegou a Nápoles, o Velho tinha 26 anos. Para as crianças que, hoje, o conhecem, o Velho fora sempre velho e tivera sempre rugas. Os mais novos costumam achar que, tanto a juventude, como a velhice, são estados perpétuos; que determinadas pessoas nascem com rugas em redor dos olhos e com peles flácidas. Acham-no, até ao dia em que dão por si e apercebem-se de que, afinal, a sua beleza também fora caçada por um arpão.

O Velho fora um jovem muito bonito. Era demasiado bonito para ter ido para a guerra, onde acabou por ficar com a cara banhada em sangue e terra. Devia ter sido um modelo de revista, que existe para seduzir, e não um modelo de soldado, que só existe para morrer. Quando chegou a Nápoles, ainda que na sua cara se continuassem a reproduzir cenas explosivas e dolorosas, era o forasteiro mais bonito da cidade. Durante uma fase precoce da sua vida, dos 16 anos até ter ido para o exército, tinha a certeza de que a vida lhe havia prometido a Elena, a mulher mais bela da cidade de Trieste, mas o destino revelou-se diferente. Mal pôde, entre beijos e promessas de que estaria em Trieste quando ele voltasse, Elena fugiu para a Alemanha. No dia em que chegou a casa e leu o bilhete que ela lhe tinha deixado, o Velho compreendeu que nem nos aliados as pessoas devem confiar.

Uma despedida na qual as pessoas não se chegam a despedir provoca mais estragos do que uma bala. Após a evasão de Elena, no coração do Velho, existia menos sangue do que nos campos de batalha que, pouco antes, havia conhecido. Ao longo da guerra, à medida que ia eliminando vidas, de forma a salvar a sua, o sangue que estava armazenado no seu coração vazou por completo. No fim do conflito, as veias do Velho estavam completamente secas, mas o seu corpo parecia não sentir falta do líquido que faz e dá vida.

Veio para Nápoles porque lhe haviam dito que aquela cidade não era uma cidade, mas uma pérola. Chegou à Estação Central apenas com uma mala vazia, pois queria começar do zero. Além do mais, o Velho sabia que, caso ficasse ali, iria precisar de pouca roupa, porque passaria a maior parte do seu tempo no mar, a nadar ou a pescar. Assim que viu o mar napolitano pela primeira vez, o Velho compreendeu que o sangue que lhe faltava podia ser rendido pelas águas mediterrâneas.

Foi amor à primeira, segunda e terceira vista. O Velho apaixonou-se pelas águas, contudo, desde o princípio, reconheceu que nem este amor podia ser eterno, porque o amor, independentemente das formas dos seus agentes, nunca é eterno — e é por isso que é belo.

O amor é belo porque pode acabar a qualquer momento. O amor é belo porque tem um fim. (Nas vezes em que o fim das pessoas chega primeiro do que o término do amor, os caixões descem à terra com a certeza de que, no seu interior, carregam uma pessoa que não parou de amar. Cá em cima, a outra parte chora, mas o clima é de celebração, mesmo que as pessoas não o compreendam nesse momento. O evento triste torna-se numa festa, porque dá-se uma união entre dois mundos antagónicos. Esta ligação, ainda que represente o dito fim do amor, provoca uma consequência extraordinária, ao demonstrar a força do amor e a revelar a existência dos amores que vão para lá da vida e da morte.)

A vida é bela porque tem um fim. A tristeza é definida por outras variáveis, nomeadamente pela duração. Ninguém merece morrer novo. Os jovens não deviam morrer. Nem os velhos bem velhos deviam conhecer a morte, contudo a natureza humana parece assemelhar-se às trajetórias injustas protagonizadas pelas balas que saem das metralhadoras e aterram nos corpos dos irmãos mais velhos, que eram pessoas jovens e que tinham muito mais para dar. A vida também é dolorosa porque tem um fim. Há fins mais sofridos do que outros. O corpo abandonado do irmão do Velho estendido numa praia. O último beijo na boca de Elena, para sempre a Mulher mais bonita de Trieste.

A vida também é bela porque, invariavelmente, todas as coisas más passam. Um mau dia de pesca. A memória terrível da guerra. A perda do irmão. A fuga do amor. Tutto passa.

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João Salazar Braga

Cascais, Lisboa. 1998. Passo o dia a escrever para os outros e as noites a escrever para mim.